Por
Mayana Soares [1]
“-Eu não sou culpada, Carlinhos, eu juro, é mais forte do que eu – De fato, havia
no mais íntimo de sua alma uma inocência infinita”[2].
Nas obras de Nelson Rodrigues o que estava sempre na pauta do dia era o desejo.
Sempre o desejo. O desejo rodrigueano não se limita a satisfação moral nem ao
prazer, posto que é fluxo, processo, movimento e, por isso, rizomático, sem
começo nem fim, apenas meio; sem centro, sem partida nem chegada, apenas
fruição. O desejo, como rizoma, é a potência necessária para a libertação
sexual e de todas as formas de fascismos.
Sendo
assim, as antigas formas binárias e rígidas da encarnação do desejo, a partir
dos modelos socialmente aceitáveis (ou não) pela sociedade brasileira de meados
do século XX, são amplamente questionadas na literatura de Nelson Rodrigues.
“Santa” x “Leviana”, “Homem-Macho” x “Maricas” são algumas das
territorialidades que foram estremecidas em suas tramas, valendo-se da
ambivalência para confrontar padrões morais e (re)criar novas linhas de fugas.
Em uma entrevista cedida a Otto Lara Resende,
Nelson Rodrigues sentencia: “A adúltera é a mais pura de todas as mulheres
porque está salva do desejo que apodrecia nela”. O desejo, como potência
criadora, desterritorializa o estigma e desloca a “adúltera” para além do
universo das convenções e da falência do desejo.
Este
posicionamento do autor pode ser visto em muitas de suas obras. Em uma das
crônicas da coluna A vida como ela é..., “O homem que não conhece o amor”,
temos a descrição de um homem que, após ter perdido sua esposa “casta” e “de
honra inabalável” descobre o amor, o impulso e a vitalidade com Neusa, mulher
independente e infiel, que lhe descortina as possibilidades do desejo, e que,
principalmente, não se limita nem se poda.Outra
importante crônica é “A esbofeteada”. Nesta obra, Silene, a namoradinha
desenhada a ser “santa”, implora ao namorado por uma tapa e seu desejo não é
limitado pela moral da época. Apanhar do namorado era seu ímpeto. Por esta
tapa, ela se redesenha, transita entre os mundos “da santidade” e “da
perdição”, busca incessantemente linhas de fuga, produzindo novas rotas de
escape.
Por
fim, “Dama do Lotação”, obra rodrigueana amplamente divulgada e disseminada por
outras mídias. Nesta, encontramos o desejo que se ramifica pelos lotações
cariocas. Solange, a esposa “casta”, é descoberta por seu marido. Este,
estupefato, ouve o relato de Solange de suas saídas à tarde para pegar o
lotação e se entregar ao primeiro homem que encontrar. O marido não aguenta tal
humilhação e decide morrer para o mundo. Solange, como uma boa esposa, vela o
marido toda noite e, todas as tardes, retorna ao lotação e ao fluxo do seu
desejo.
Este
ano comemoramos o centenário de Nelson Rodrigues, e nada mais justo do que
homenagear a genialidade, a acidez e o legado literário deixado por este autor,
que nos permitiu, e ainda nos permitem, viajar e nos desterritorializar.
Independente das opiniões diversas, e por vezes, contrárias, acerca de sua
obra, este escritor propõe uma cartografia do desejo, cujas conexões permitem
múltiplos contatos e encontros. Como poucos escritores brasileiros, conseguiu
expressar em sua arte tensões sociais e familiares, e discutir temas
considerados “tabus” ou marginalizados de maneira forte, pungente, urgente,
dramática, visceral e necessária.
[1] Especialista
em Estudos Culturais, História e Linguagens. Possui graduação em Letras com
Língua Espanhola. Atualmente, é professora, técnica educacional, pesquisadora
no Núcleo de Pesquisa Estudos Culturais (NPEC) e participa do grupo de pesquisa
Cultura e Sociedade (CUS). myrs_84@hotmail.com.
[2] Este trecho
corresponde um fala da conhecida crônica rodrigueana Dama do lotação, proferida
pela personagem Solange, uma das crônicas televisionadas em A vida como ela é,
de 1996, media-metragem, encarnada pela atriz Maitê Proença.
adorei o texto. :)
ResponderExcluirnão conheço as obras desde autor, mas deu uma vontade danada de ler.rsrs
(eu escrevo tbm,textos,poesias de uma forma mais romantica)
Olá Thammy,
Excluirobrigada por ter lido e visitado o site do NPEC. Veja as regras do edital e inscreva seus textos também!
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