Por
Mayana Soares[1]
Esta
reflexão precisa começar a partir de alguns questionamentos: existe o “sujeito”
puramente humano? Há uma fronteira que separa humanidade e natureza? É possível
existir “pureza” na existência humana? Humano e máquina possuem existências
distintas?
Marca-passo,
lentes de contato para aumento visual, próteses que substituem membros, silicone,
tecido humano desenvolvido a partir da nanotecnologia, chip de identificação
biométrica... A existência dos clones, dos ciborgues, dos híbridos, etc, tem
colocado em xeque a “soberania” humana e relevado que não há pureza na
experiência humana, nem pós-humana. Dentre as grandes revoluções que marcaram
os séculos 20 e 21, sem sombra de dúvidas, a revolução dos ciborgues foi uma das
mais consideráveis. A relação entre “seres humanos” e “máquinas” sempre existiu
e nunca foi tão evidente como agora. A concepção de “sujeito”, supostamente
superior a tudo o que se denomina “não-humano”, tem subjulgado toda e qualquer
forma de existência humana que não se enquadre em suas categorias funcionais e
ontológicas.
A
severa divisão imposta entre a humanidade e tecnologia tem contribuído para a
criação de discursos, amparados pela ciência, medicina e pelo direito, que
aprisionam corpos e mentes numa estrutura fixa, cuja ruptura é, geralmente,
considerada anormal, desviante, abjeta.
Gilles
Deleuze, filósofo francês, afirma que a existência humana é atravessada por
tudo o que existe (pessoas, plantas, energia, animais, máquinas, etc, etc) e,
por isso, considera que o corpo é uma máquina, mas não numa perspectiva
funcionalista, e sim, no sentido de permitir variadas conexões, pois permite o
fluxo de desejos e de intensidades. Também, Donna Haraway, feminista e estudiosa
da tecnociência, concorda que o ciborgue é a encarnação humano + máquina, que
tem contribuído para repensar a noção essencialista do “ser humano”. Segundo
esta autora, “A tecnologia não é neutra.
Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós.
Vivemos em um mundo de conexões – e é importante saber quem é que é feito e
desfeito.”.
Se a existência humana é criada e recriada a todo o
momento não é possível crer em unidades separadas (sujeitos), com uma
existência superior e independente de tudo o mais que há. Uma das críticas aos
pós-humanos, humanos-máquinas, é que a sua experiência é uma imitação da vida
humana. Mas, em que medida a experiência humana não é uma imitação, criação ou
recriação de outrem?
As experiências pós-humanas (ciborgues, seres
trans, clones, híbridos, entre outros) têm contribuído para repensar e
questionar pressupostos tão bem consolidados ao longo dos tempos da
inevitabilidade da superioridade humana em detrimento de outras possibilidades
de existência. Com as inovações tecnológicas, é possível remodelar corpos,
reinventar a humanidade e ultrapassar a barreira fixa que nos limita a uma
existência desconectada e sem pulsação.
Assim, deixo as últimas linhas para Donna Haraway, que nos permite mais uma reflexão:
“Se as mulheres (e os homens) não são naturais, mas
construídos, tal como um ciborgue, então, dados os instrumentos adequados,
todos nós podemos ser reconstruídos”.
Referências
DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs:
capitalismo e esquisofrenia. v. 2. São Paulo: Editora 34, 1995. Coleção TRNS.
[1] Especialista
em Estudos Culturais, História e Linguagens. Possui graduação em Letras com
Língua Espanhola. Atualmente, é professora, técnica educacional, pesquisadora
no Núcleo de Pesquisa Estudos Culturais (NPEC) e participa do grupo de pesquisa
Cultura e Sociedade (CUS). myrs_84@hotmail.com.